sábado, 30 de outubro de 2010

A Maria da Fonte foi uma grande revolucionária

                     Na verdade foi uma grande reacionária

Fonte: Visão, artigo “Mitos da História de Portugal” (p.79)

Braço no ar, foice ao ombro, por vezes pistola na mão, busto generoso moldado por um corpete justo, saia rodada e pés descalços – eis o retrato-robô de Maria da Fonte, uma mulher que todos conhecem mas ninguém sabe ao certo quem foi. Fica a ideia de que se tratou de uma grande revolucionária, e as estátuas espalhadas pelo País fazem que, na nossa imaginação, a confundamos com a própria República, outra entidade abstrata com corpo e rosto femininos.

Mas está tudo errado. Maria da Fonte foi o nome que um movimento coletivo de cariz marcadamente conservador, e que portanto nada teve de revolucionário.
Passado o turbilhão das Invasões Francesas (1807-1811) e ganha pelos liberais a guerra civil de 1824-1834 contra os absolutistas, Portugal andava ainda à procura da «normalidade democrática». Tudo começou no dia 19 de março de 1846, quando o pároco de uma freguesia da Póvoa de Lanhoso, no Minho, não conseguiu fazer cumprir a nova lei segundo a qual, em nome da higiene pública e para evitar os focos de epidemias, os enterros passavam a fazer-se em cemitérios e não no interior das igrejas.

A oposição ao decreto foi protagonizada por um grupo de mulheres armadas de foices e gadanhas. O rastilho alastrou por toda a vasta região minhota e transmontana, e da contestação à «Lei da Saúde» rapidamente se passou para uma insurreição generalizada contra o governo de Costa Cabral, da direita moderada.

Essa oposição juntou no mesmo saco os esquerdistas radicais conhecidos por setembristas e os reacionários miguelistas saudosos da monarquia absoluta. Falhada a tentativa de esmagamento da sublevação, a rainha D.Maria II viu-se obrigada a demitir o governo e a mandar para o exílio (em Espanha) Costa Cabral e o seu irmão José Cabral, ministro da Justiça – os célebres «Cabrais» que permanecem no imaginário popular.

As rivalidades entre Saldanha, Palmela e o duque da terceira levaram depois à guerra civil de 1846-47 que ficaria conhecida por Patuleia e que só terminou com a intervenção inglesa e espanhola, que reconduziu Costa Cabral ao poder. Regressada a instabilidade, só me 1851 a Regeneração inauguraria o longo período «normalidade democrática» da Monarquia Constitucional, que duraria até à implantação da República em 1910 e se prolongaria já sob as cores verde e encarnada até ao golpe de maio de 1926.  

Porque se chamou a este movimento contestatário de 1846 Revolta da Maria da Fonte? Porque reza a moderna lenda que uma das mais assanhadas líderes da luta contra os enterros nos cemitérios foi uma tal Maria, residente na freguesia de Fonte Arcada, perto de Penafiel. Necessariamente conservadora, como todas as que a acompanharam de foice ao ombro e braço erguido.
Mas são assim os mitos duradouros. Mais fortes, coloridos e sedutores do que a apagada e vil realidade.