domingo, 27 de janeiro de 2013

O relato inédito do que aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro



Fonte: EI

Um texto inédito do historiador e veterano de guerra russo Serguei Kolomnin faz um relato do que verdadeiramente aconteceu na madrugada de 20 para 21 de Janeiro de 1973. O documento, que tinha sido publicado apenas em russo, contém testemunhos dos marinheiros que estavam a bordo do navio da marinha soviética que resgatou Aristides Pereira e os restantes prisioneiros e entre as novidades avançadas, refere, pela primeira vez, que Ana Maria Cabral estava também cativa no barco guineense.

Amílcar Cabral foi morto no dia 20 de Janeiro de 1973, em Conacri. Sabe-se que regressava de uma recepção da embaixada da Polónia, cerca das 23h, acompanhado da mulher Ana Maria, quando à porta de casa foi parado por um grupo chefiado por Inocêncio Kani. A ideia original seria prender Cabral, mas na confusão que se seguiu o líder do PAIGC acabou assassinado com um tiro na cabeça.

Um outro grupo chefiado por Mamadu N’Djai invade a casa de Aristides Pereira, atam-no com um arame nas mãos e nas pernas e metem-no num carro. Seguem-se ataques às casas de Vasco Cabral, José Araújo e outros líderes do PAIGC. Todos os que foram capturados são levados para o porto e enfiados nos porões das vedetas do PAIGC. Entretanto, as autoridades de Conacri começam a agir. Na cidade é declarada a lei marcial, as patrulhas militares saem à rua e alguns dos conspiradores são presos, outros conseguem fugir e dirigem-se também para o porto.

Inocêncio Kani (que Cabral, quando esteve na União Soviética, chegou a apelidar de “futuro almirante da marinha da Guiné-Bissau”) toma a decisão de rumar para Bissau para, segundo Kolomnin, entregar os prisioneiros às autoridades portuguesas.

Entretanto, o presidente da Guiné-Conacri, Sékou Touré, ao saber da captura dos líderes do PAIGC e da sua retirada do país pede auxílio ao embaixador soviético, A. Ratanov, com o argumento que a Guiné não tinha meios para perseguir os conspiradores.

Um marinheiro do destroyer soviético, Бывалый – em grafia latina Byvalyj (O Experiente), lembra que “à meia-noite de dia 20, entrou de repente a bordo o comandante do Exército do Povo de Conacri, Sangare Toumani, acompanhado por uma equipa de especialistas militares soviéticos onde estavam o major-general Chicherin e o capitão Zhuchkova. Em nome do presidente Touré e do embaixador soviético, pediram ao comandante que se fizesse ao mar, capturasse os conspiradores e que aniquilasse qualquer bolsa de resistência”.

O comandante do destroyer soviético, o capitão Yuri Ilyin, via-se assim numa posição delicada. Era um marinheiro experiente, um dos membros da tripulação recorda que “[Ilyin] era um bom líder, exigente e justo. Os homens respeitavam-no muito”. O oficial estava bem consciente que tomar parte em operações de combate com possível uso de armas significava provocar um incidente internacional. Além disso, sem uma ordem directa de Moscovo ou do seu comando em Severomorsk [base da frota russa do norte, 25 quilómetros a norte de Murmansk], não tinha direito a largar amarras.

Mas também sentia que não tinha direito de ignorar um pedido do embaixador. Como reforça um outro marinheiro da sua tripulação, “todos nós, na época, tínhamos sido criados na tradição do internacionalismo”, e para Ilyin era a vida de amigos – dirigentes do PAIGC – que estava ameaçada.

O comandante do contratorpedeiro enviou então mensagens codificadas para Moscovo e para o seu superior da Frota do Norte, onde informava o que tinha acontecido em Conacri e transmitia a sua decisão de navegar em perseguição do grupo de conspiradores e assassinos de Cabral. Ao mesmo tempo, Ilyin sabia que não obteria uma resposta com a rapidez necessária – tanto em Moscovo como em Severomorsk era madrugada.

O capitão sabia que tinha o tempo contado para conseguir capturar os conspiradores sem arriscar entrar em águas territoriais de um país da NATO. Decidiu avançar mesmo sem respostas às suas mensagens. Faz soar o alarme de combate, reúne no convés os outros oficiais e conta-lhes o seu plano. Nenhum se opõe. Segundo Kolomnin a reacção dos marinheiros soviéticos foi unânime “é preciso salvar os companheiros de Cabral”. O único que levanta dúvidas é o representante do KGB na embaixada soviética, que praticamente diz ao capitão Ilyin que está por sua conta e risco. Apesar desta pressão, o capitão mantém a sua decisão.

Às 0h50 o destroyer faz-se ao mar, em perseguição dos conspiradores. A bordo seguia também o comandante Sangare Toumani com um pelotão de soldados guineenses. Ao fim de uma hora, chega a primeira mensagem de Moscovo – “o oficial do contratorpedeiro só poderá usar as armas com autorização do Chefe da Marinha” – mas, Ilyin já navegava preparado para o combate.

Sabia que as três lanchas rebeldes estavam armadas com metralhadoras gémeas de 25 mm, capazes de provocar sérios danos no destroyer. O navio soviético navega junto à costa, os russos conheciam as capacidades das tripulações dos conspiradores e sabiam que de noite não se atreveriam a navegar ao largo, o mais provável, pensavam, era que lançassem a âncora e esperassem pela luz do dia.

Esta hipótese é confirmada. Às 3h da madrugada, o tenente Maleshin detecta dois pontos fixos no radar, as características coincidem com os barcos dos sequestradores. Ilyin força as máquinas do destroyer, espera cair sobre o inimigo aos primeiros raios de sol. É o que acontece. Às 5h da madrugada, o contratorpedeiro russo aparece de repente, do meio da névoa da madrugada, em frente aos barcos rebeldes. Nestes, a tripulação tenta levantar âncora e ligar os motores, mas param quando vêem as torres da artilharia soviética apontadas para eles.

Os marinheiros do contratorpedeiro manobram até ficarem ao lado dos barcos dos conspiradores. Os soldados guineenses abordam-nos, desarmam e prendem os rebeldes. Toda a operação é feita sem disparar um tiro. No entanto, depois de revistados os porões, não se conseguem encontrar os líderes do PAIGC que tinham sido presos pelos conspiradores. Estes só foram descobertos mais tarde, no terceiro barco, cuja tripulação tinha perdido a orientação no escuro e encalhara nas proximidades. Segundo testemunhos de marinheiros, Aristides Pereira, Ana Maria Cabral, Vasco Cabral, José Araújo e outros membros da direcção do partido estavam com um “aspecto horrível”, com marcas visíveis de tortura e espancamento. Aristides Pereira era quem estava em pior estado e quase perdeu as duas mãos por falta de fluxo sanguíneo.

No caminho de regresso, o capitão Ilyin envia novos telegramas codificados para Moscovo com o relatório completo da missão. Quando o destroyer chega a Conacri tem à espera um grupo de especialistas soviéticos. Depois da entrega “oficial” dos barcos capturados e dos rebeldes às autoridades guineenses o oficial russo é literalmente atacado por todos os representantes da embaixada da URSS.

Todos querem saber detalhes, principalmente se foram usadas armas. De acordo com as memórias de um marinheiro do destroyer, um dos diplomatas estava tão nervoso que não se coibiu de fazer o sinal da cruz enquanto murmurava “graças a Deus, não aconteceu nada”.
Mas a história não acaba aqui. Apesar da atmosfera de euforia vivida, das congratulações por parte da tripulação, havia um homem, um único homem, o capitão Yuri Ilyin, que teria de ser responsabilizado pelas suas acções.


Em Moscovo, a sentença já tinha sido dada: “ele [Ilyin] não pode ser perdoado”. Por ordem do Comandante da Marinha soviética, Ilyin foi removido do seu posto por “arbitrariedade e violação das instruções oficiais”.

Valeu-lhe então a posição do major-general Chicherin, que enviou um novo telegrama ao Estado Maior onde dizia que a acção do capitão Ilyin “merecia a mais viva estima do presidente Sékou Touré e foi uma grande vitória sobre os mercenários do imperialismo. Sékou Touré solicita a promoção do camarada Ilyin”.

No dia 22 de Janeiro de 1973, as acusações contra Ilyin foram retiradas. Algumas horas depois, chega um telegrama assinado pelo almirante Yegorov, comandante da frota do norte, onde declara a sua gratidão ao capitão Ilyin pela “acção audaciosa e decisiva num serviço de combate no Atlântico”. O telegrama terminava com um “regressa. Seremos piedosos”.

Depois de concluir o serviço, o destroyer regressou à pátria. Kolomnin não sabe se algum dos tripulantes foi condecorado, mas diz acreditar que não. O navio de guerra continuou a navegar até ao final dos anos 80 do século XX. De seguida, o Byvalyj foi desactivado e vendido como sucata para a China.